A montanha sou eu

Francisco Ariztía : 2025-02-13

13 FEVEREIRO / 22 MARÇO 2025

“A montanha sou eu”, para um retrato breve de Francisco Ariztía

Quando chegou a Lisboa, em 1975, Francisco Ariztía tinha já experimentado outras pátrias – Belgrado, Paris, Bolonha – tinha regressado ao Chile de Allende mas depois do golpe fascista, soube que Portugal, o país de Noémia, seria também o seu país. Sorte a nossa, ganhámos um grande pintor e muitos de nós um amigo, que o Pancho, como todos o chamávamos, bom conversador e contador de histórias, era de fazer amigos.

É curioso pensar que, nos seus 79 anos de vida, Francisco Ariztía viveu no Chile apenas 23 anos e, no entanto, o Chile vive, vibrante ou melancólico, intenso, violento ou sereno e nostálgico nas diversas faces da sua pintura, na abstracção e na neo-figuração, no realismo mágico com toques surrealizantes, no envolvimento social e na ironia crítica. O artista saiu da sua terra, mas trouxe no forro da mala íntima tudo aquilo de que precisou para a fazer renascer onde quer que se fixasse, com frequência discretamente, em breves alusões pictóricas, cores, atmosferas, signos, sugestões evocativas do país natal.

Em 2017, Francisco Ariztía fez uma exposição na Galeria Giefarte a que deu o nome de “Auto-retratos”, título curioso e carregado de significado, se pensarmos que nesta mostra retomava um tema já anteriormente trabalhado, em 2014, na grande exposição “Nai Tan Dei” da Sociedade Nacional de Belas Artes: as montanhas do Chile. Este leitmotiv haveria de permanecer, insistente e tutelar na última exposição individual do artista, em 2021, “Paisagens, e Não Tanto”, na Casa da América Latina, cujo núcleo eram as grandes telas expressionistas, representativas das manifestações que então dominavam, ferozes, as ruas de Santiago, mas as longas montanhas teimavam em estender em redor a sua horizontalidade tranquilizadora.

As montanhas do Chile ocuparão, pois, a última década do trabalho de Ariztía, que as pintou incessantemente, encontrando nelas o símbolo e a síntese da terra longínqua, memória perene da origem. Como Neruda ou Gabriela Mistral, o pintor reconhece-se na cordilheira andina, casa e espelho a que então se recolhe, interrogativo, confrontado com a essência dos vulcões extintos ou em suave erupção, a vida esplendorosa e mutável, a morte longamente adormecida, numa dialéctica lenta, sem pressa. As telas e o papel acolhem as cores que em suaves transparências ou intensamente se misturam, luz e sombras, terra, água, fogo e ar numa reinvenção do mundo cuja mão do artista, alquimicamente, busca, buscando a sua alma mais profunda, regresso e renascimento.

Disse Ariztía, em 2017:
“Viajo em mim. Sou o meu próprio país, a montanha sou eu. Os seus trilhos e caminhos aparecem e permitem-me viajar na minha própria geografia. Tudo permaneceria em sonho se não fosse o papel que agarra a imagem. Às vezes a cor dirige a emoção, às vezes a água provoca a surpresa. Organizo-me para que tudo cante. Provoco-me, desafio-me, assombro-me. A memória acompanha-me nestes auto-retratos”.

“Caminero”, como lhe chamou o filho Francisco no notável filme que sobre o seu pai realizou, Ariztía recria e reinventa a memória das montanhas, mas nunca faz delas retratos hirtos do passado. Elas são-nos dadas a ver como corpos vivos e vibrantes, estendidos numa horizontalidade nunca quebrada pelos cumes verticais, pontos de mira da caminhada que nos convidam a empreender. Os planos criados pela cor, os volumes que mostram e ocultam, a luz solar ou nocturna, ora nos obrigam a mergulhar profundamente na terra onde, por vezes, uma casa nos chama, ora nos apressam o passo com a cordilheira a mover-se em filme, ao nosso lado.

Montanhas em movimento, como o mundo que o pintor nunca deixou de interrogar e reinventar, deslumbrado como uma criança a ver nascer, sobre a superfície branca, a possibilidade de mundos novos, criados pelos seus inquietos pincéis.

+info : Francisco Ariztía