LAST CALL AWAKENING

LUÍS LÁZARO : 2023-02-04

04 de FEVEREIRO : DESENHO + PINTURA + VIDEO

Esta peça foi feita nos meses sequentes ao início da guerra da Ucrânia. A guerra começou no fim de fevereiro 2022 e esta peça foi criada entre Março e Abril, sendo depois exposta no mês de Maio e parte de Junho numa exposição colectiva. Foi a primeira exposição em que aceitei participar depois do fim do longo período pandémico. Ultrapassado o enorme deserto económico, social e cultural a que todos fomos sujeitos, o absurdo da ocupação russa, o absurdo da nova realidade que nos estava a ser apresentada, era difícil de assimilar. Estando esta obra já alinhavada, no essencial, desde o princípio do ano de 2020, sendo já a ideia base uma reacção às profundas e transversais implicações existenciais criadas pela crise do covid, perante a eclosão da invasão russa e perante o processo de instalação do estado de guerra, em que semana após semana íamos realizando que este conflito estava para ficar, o ónus temático desta obra ganha relevo e até urgência no que sugere. “Nunca estivemos tão perto de uma guerra nuclear, ninguém parece estar a falar nisso” dizia na altura. Quase um ano passado e estamos cada vez mais perto de tão ignóbil possibilidade. Todo este ano foi um contínuo crescendo belicista que não poderá levar a outro lugar. As indústrias militares das principais potências prosperam como há muito tempo não acontecia, os orçamentos dos ministérios da defesa de grande maioria dos países multiplicam-se, enquanto um povo é massacrado e nós somos obrigados a ver em directo o exibicionismo do poder destrutivo das novas armas tecnológicas do sec XXI, a ceifar edifícios residenciais, creches, escolas, hospitais, massacrando os mais pobres dos pobres que ficaram para trás. Passados 11 meses de guerra só se fala de armamento, numa versão de pão e circo, mísseis e panzers à hora do jantar. Na sua nova vocação sensacionalista, talvez por pânico de se estarem a tornar obsoletos, os serviços informativos televisivos são sequências temáticas esquizofrénicas. Os comuns “telejornais”, tornaram-se em sinistros formatos de entretenimento, em que o atroz se alia à banalidade. Ou não é claro o sadismo sequencial da imagem de uma criança amputada seguida da notícia entusiástica da transferência milionária de um futebolista? Todas as agências de informação têm uma agenda de interesses própria, competem entre si na implementação disso mesmo, na construção da “verdade” e na instituição da sua versão de Realidade.
Não se viu nem se vê qualquer vontade ou intenção de um início de conversações para um cessar fogo e negociações de paz. A comunidade internacional muito solidária com a causa ucraniana, parece não perceber que esse é o único caminho a ser incentivado e exigido. Neste momento, a Humanidade corre várias ameaças existenciais, sem dúvida que um conflito global nuclear é a forma mais rápida de acabarmos com a nossa civilização tal como a conhecemos, triste e patético fim para uma espécie, que depois de uma longa diáspora, no pico máximo da sua sofisticação tecnológica, tendo o conhecimento e a possibilidade de lidar com a maioria dos perigos que a ameaçam, se auto extingue, presa num padrão de instintos tribais de dominação, abuso e ganância cega. Todos os grandes perigos que hoje defrontamos são globais, e requerem soluções globais. O fanatismo patriótico, os nacionalistas, por esse mundo fora, se tiverem o mínimo de lucidez, de bom senso, terão de ser globalistas militantes, exímios na comunicação e cooperação com os outros povos se quiserem prestar algum tipo de serviço útil aos seus amados países.

Aldus Huxley, profeticamente escreveu que pairavam sobre a Humanidade três grandes perigos demoníacos. A idolatria nacionalista, a mentira organizada, a distracção ininterrupta, considerando Huxley que esta última “non stop distraccion” seria o maior dos perigos. Porque impossibilita a reacção crítica, pois facilita os outros dois e todos os perigos inerentes às tiranias e abusos de poder, ao retirar ao indivíduo a possibilidade de estruturar um pensamento individual de qualidade, a sua capacidade de concentração, de reflexão, de desenvolvimento de sentido crítico informado, etc, permitindo-o assim a ser conduzido sem percepção, pelas propagandas e narrativas dos poderes actuantes, levando-o a ser cúmplice entusiasta ou indiferente de ideologias destrutivas e abusivas, roubos, guerras, violações, genocídios, praticados entre nações, corporações e todo o tipo de organizações de grupos de interesse. O cidadão comum é assim obrigado ao convívio banal com permanentes atentados aos direitos humanos e à natureza a uma escala planetária. É difícil salvar um navio de naufragar se parte da tripulação está empenhada em fazer buracos no casco e a maioria da mesma está alienada do que se passa, ou por estarem ocupados a encontrar o melhor ângulo para tirar uma selfie ou entretidos com uma nova dancinha do tik tok ou a discutir os “donos da bola” e o “big brother”
Parece-me que somos, social, cultural, fundamentalmente a materialização clara das preocupações de Huxley. As tecnologias derivadas da grande revolução digital estão irreversivelmente instaladas na nossa biologia e cognição. Permeiam todas as dimensões da nossa condição, em todos os níveis das relações humanas. Da relação entre governos e populações (nunca antes as classes dirigentes tiveram a possibilidade “sobre-humana” de poder monitorizar todos os cidadãos 24 sobre 24h, numa escala de acumulação e processamento de dados nunca imaginados) às relações de trabalho, às familiares e afectivas. Do diálogo e construção interna individual, à construção de identidade pessoal e comum, à sexualidade. As novas tecnologias estão presentes com carácter definidor e constituinte.
As últimas gerações de algoritmos resultantes da primeira vaga da era digital, vocacionados para acumulação de dados individuais, projectados para a fixação, a todo o custo, da nossa atenção, são de uma eficácia implacável. Na monitorização e na sedução. O espírito e a cognição humana estão já sob sequestro incondicional. A par dos desafios que as alterações climáticas nos apresentam, a integração harmoniosa e proveitosa das tecnologias que exponencialmente vão surgindo nas nossas vidas, são alguns dos grandes desafios globais que a humanidade enfrenta.

Condicionados e sujeitos a forças e poderes inidentificáveis, qual é então o lugar e papel do indivíduo perante tão complexa realidade? Numa altura em que já não há sequer uma corrente “mainstream”, que de alguma forma nos una e sirva de referência a todos, mas sim múltiplas e incessantes torrentes de estímulos, quase infinitas solicitações de atenção e versões de verdade, como é possível ter o indivíduo uma base de conhecimento e desenvolver uma consciência do que realmente se passa, de forma a agir? Será talvez o grande desafio do presente, individual e colectivo. Evitar as cavernas psicológicas que todos estes sistemas operantes nos impõem de forma a ter algum tipo de perspectiva geral é uma tarefa ciclópica. As ideologias ditatoriais assim como a neo-liberal, claramente, querem-nos distraídos e superficiais. No nosso caso, na chamada civilização ocidental, o neo-liberalismo, com a falácia de liberdade e a promessa materialista de felicidade, impute-nos a obrigação “de vencer” e a consequente culpa em caso de insucesso. É nefasta a própria ideia da obrigação de ser empreendedor num contexto de competição cega pelo lucro, no fundo, querem-nos culpados por não sermos melhores escravos, com o estigma de falhanço se não formos boas peças dos “ideais” da máquina capitalista, exclusivos responsáveis por possíveis insucessos, gerando assim milhões de deprimidos, em auto-flagelação por não serem ricos, infelizes por não terem mais coisas materiais, dispostos assim a qualquer sacrifício por dinheiro. Nenhuma destas forças responde às fundamentais necessidades da psique humana, nenhuma destas forças alimenta a profunda e complexa condição humana.

Acredito que a consciência Humana tem sido um longo processo cumulativo de conquistas civilizacionais, com tendência na melhoria dos valores fundamentais, da liberdade, da justiça e da dignidade Humana. Com frequentes e recorrentes episódios históricos de atraso civilizacional, a consciência individual e colectiva avança inexoravelmente para melhor. Mais que não seja, tento e quero acreditar nisso. Acredito sem dúvida, no poder e responsabilidade do indivíduo e que as grandes revoluções e avanços da Humanidade começam sempre na unidade humana. Acredito, assim e também, em algo forte e real que nos une a todos, uma consciência colectiva que é a síntese da soma e do produto de todas.
Creio que estamos numa decisiva encruzilhada civilizacional e são muitas as ameaças que enfrentamos. Para todas, só vejo uma solução real, a evolução, a maturidade da nossa inteligência e sensibilidade humanistas.
Luís Lázaro 2023

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