Vida de Artista

André Ruivo : 2024-07-04

04 / 27 JULHO 2024

Na exposição “Vida de Artista”, de André Ruivo, encontramos o desenho de uma pomba, pousada sobre o parapeito da janela do quarto, que inquire o artista ainda deitado na cama: “Olha lá, não tens coisas para fazer?” E o artista responde, com ar conformado, “tenho”. Esta ilustração sintetiza o contraste e duplicidade manifesto no título desta exposição, que surge na sequência do livro homónimo de André Ruivo. A duplicidade é esta: ao mesmo tempo que, enquanto expressão popular, aponta para uma boa-vida, folgada e livre de responsabilidades e compromissos, presa a uma ideia romântica e oitocentista da figura do artista burguês; também nos remete para a condição dos artistas no presente: uma carreira incerta, economicamente insegura, refém de subsídios ou da sorte, e longe de ser boa e livre de preocupações. Noutra ilustração, vemos o artista, precário, no balcão do café: “Não quero nada se faz favor”.
A exposição de André Ruivo faz jus à duplicidade do próprio título, mas faz muito mais. Uma boa alternativa ao título escolhido por Ruivo para esta exposição/livro seria um joyceano “Autorretrato do Artista Quando Precário”. Na verdade, a obra retrata, em tom diarístico, a vida de Ruivo nos últimos dois anos (no último desenho do livro, observamos um dossiê de desenhos feitos entre 2022 e 2024) – ainda que recupere, para fins artísticos, algumas ilustrações mais antigas. São episódios do dia-a-dia do artista. A situar-nos no tempo estão ainda referências à atualidade política – ao conflito israelo-palestiniano acentuado no final de 2023, às recentes manifestações nacionais “Vida Justa” ou “Casa para Viver” (2023), ou aos 50 anos do 25 de Abril, por exemplo -, que servem outro propósito: as próprias posições políticas de Ruivo são aqui evidentes. Mas entre uma ida à manifestação pró-Palestina e brincadeiras com a senilidade de Aníbal Cavaco Silva, observamos várias idas ao café e as conversas que lá se ouvem, cenários da vida caseira e planos vangoghianos da própria casa (que por vezes nos remetem para o universo do próprio artista, apontando especialmente para os seus gostos musicais e artísticos, mas também para a tipo de alimentação que faz), ou reflexões mais comuns, que vão desde o tamanho da cama (vai sendo pequena para duas pessoas) ao número de feriados numa semana atípica.
André Ruivo é um daqueles artistas em que vida e obra se confundem – e esses são sempre os melhores artistas. A sua vida é também a sua obra.
Assinalemos, também, o facto de este projeto dar continuidade às abordagens já usadas por Ruivo em dois dos seus recentes livros: Vírus, de 2021, que também é uma espécie de diário do período da pandemia de Covid-19; e VOTA!, de 2022, que revela a faceta e posições políticas do autor: assumidamente esquerdista e anti-guerra.
Por fim, importa referir que, como em toda a obra de André Ruivo, os desenhos para o livro/exposição “Vida de Artista”, marcados pela já costumeira ternura do traço e do espírito do artista, servem, em última instância, para rir, sorrir e reflectir.
Tiago Guerreiro

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