VOLTAREI SEMPRE…..
JOSÉ MOUGA : 2017.03.04
04 MARÇO A 23 MARÇO : DESENHO + PINTURA
Notas de viagem : De madrugada saímos de Tavira todos calados e todos sozinhos em direcção a Évora. À medida que ficavam para trás cheiros de alfarroba e de terra vermelha seca e pulvorenta, começamos a subir as serras empinadas e difíceis por onde a camioneta da tropa, tão cinzenta como um chaparro se ia fundindo a cada curva ansiosa nas cores de outras arvores e outras poeiras.
Sentado com o silêncio ao colo ia vendo desfilar esses lugares estranhos e diferentes de cor e forma daqueles de onde provinha, mais verdes e angulosos mais imperativos, beirões. A serra algarvia era mais redonda e cinzenta, vagarosamente a ficar para trás. Quase sem aviso começou a desenrolar-se a planura a pintar-se de ocre o chão e a amarelar as searas; muito chão e muitas searas sem parar.
Ia a manhã a meio, a impaciência inteira e o silêncio todo gasto, quando um solavanco convulso fez parar a tropa. Recordo-me de não ter perguntado o que se passava e limitei-me a mudar o corpo fardado de cinzento para o abrigo de uma sombra e sentar-me a fumar.
Lentamente o sitio foi-se desenhando diante de mim e ali em frente postou-se uma mancha vertical tecida de ciprestes desiguais e brevemente oscilantes. Um vento quente e seco soprava já sobre o alentejo de que eu apenas conhecia as palavras que o contavam mas desconhecia os cheiros e os sons de que era feito. Os ciprestes não se desassossegaram com a nossa presença. No bolso do blusão, o pequeno caderno que sempre trazia comigo, reclamou o seu uso e comecei vagarosamente a desenhar. Era uma ideia antiga e literária desenhar o alentejo, uma quase obrigação moral e ideológica. Porém, ali mesmo, apenas o alentejo evidente se propunha como uma planície de facto onde um bosque de ciprestes escuros se ladeavam e abraçavam como cantores de um grupo coral. Inicialmente enchi as folhas do caderno com o que os olhos viam e logo de seguida com o que os olhos imaginavam. Horas depois chegou quem nos levasse dali e o caderno regressou ao bolso.
Évora estava branca como eu esperava que estivesse ao atravessar-lhe as ruas. A rua que me coube deixou-me na grande porta do Hospital militar onde eu iria sofrer da doença inventada que talvez me tirasse dos ombros as estrelinhas de cadete. Deram-me um quarto grande e de tecto alto, branco e desamparado, onde quatro camas se ladeavam e de que escolhi a mais perto da grande janela de granito. Por cima da porta havia um crucifixo velho com um cristo antigo e melancólico nele pregado; Olhamo-nos por instantes dissemos um breve cumprimento.
A grande janela abria-se sobre dois casarões nobres e regulares vagamente ameados e um pateo de muros brancos de onde saiam a meio corpo quatro ciprestes. Seriam a companhia dos olhos pelo tempo que ali ficasse, as primeiras coisas a ver de madrugada e as ultimas a recordar no fecho da noite.
O caderno voltou a encher-se com essas formas verticais e escorridas, cada vez mais próximas e pessoais, tornadas quase obessecivas. Quando me despedi delas já eu lhes tinha dado nomes e as tinha transposto em instintiva memória para a semelhança dos ciprestes de Van Gogh e para os muros de Saint Remy. Ainda fiquei muito tempo a olha-los antes de deixar o quarto, a mala arrumada, o caderno no bolso e um peso no peito. Uma lágrima civil subiu-me aos olhos.
Voltaram os ciprestes mais tarde e regressaram na forma de pequenos desenhos a que chamava então “ao sul”. Esses desenhos foram guardados, quase escondidos e partilhados apenas com pessoas muito próximas e queridas. Alguém as tem.
Apanharam-me agora desprevenido, fizeram-se finalmente outros ciprestes, ganharam corpo e cor, venceram o rectangulo da janela e o abandono da estrada e agora despudorados saem de mim diferentes do que eram quando os guardei no bolso do blusão ao aconchego do peito.
Boa viagem.
José Mouga
Caxias, Setembro 2014