RECORDAÇÕES DA MÃO ESQUERDA

MATHIEU SODORE : 2021.05.15




15 MAIO A 26 JUNHO 2021 : DESENHO

« Eu sou canhoto, é preciso que se habituem »
Barack Obama, 20 de janeiro de 2009

A exposição apresenta uma galeria de retratos e uma serie de desenhos de objetos. Particularidades : as personagens desenhadas são todas canhotas, como eu, e os objetos representados têm em comum pôr sérios problemas de utilização aos canhotos.

No entanto, o meu propósito não é nem glorificar os canhotos (« Vejam estas celebridades, todas canhotas ») nem de nos colocar como vítimas (« Esta sociedade de destros não é feita para nós » ). Tata-se sobretudo de levar os visitantes, estaticamente 90% destros, a confrontarem-se com uma realidade raramente evocada, a perceberem a que contorções se entregam os canhotos para se adaptarem.

Para provocar tal reflexão, era preciso tornar os personagens como os objetos reconhecíveis à primeira vista, passar pelo realismo. A criação destas obras é para mim uma forma de revisitar o retrato como género e de abordar questões ligadas à metodologia do desenho e da representação. Acho que o problema não é abster-se de certos efeitos ilusórios da representação, mas, ao contrário, assumi-los de forma consciente, criando espaços nos quais a subjetividade e a intimidade possam encontrar um caminho. Meu trabalho tenta obter um “efeito de presença”, o que Paul Ricœur chama de “adicional” em relação a qualquer representação e a qualquer regra. Em suma, uma abordagem que visa aproximar-se o mais possível da complexidade que habita cada rosto.

No obstante, minha iniciativa está nas antípodas da frieza clínica do hiperrealismo. Com efeito, se, à semelhança dos artistas fotorrealistas, trabalho a partir de fotografias, eu não procuro um acabamento ilusionista.
O meu desejo é trazer um conteúdo emocional, uma intenção, de não ser neutro. Isso passa, entre outras coisas, pelo facto de reivindicar a estrutura. Pierre Alechinsky (que é canhoto) explica-o muito bem: “Admitir que o artista depende de um retângulo, que ele acusa esse retângulo e que o mostra antes de começar, e vai para o seu interior”. Além disso, reenquadrar sistematicamente permite-me fazer um foco sobre o que me interessa mais.

Em seguida, lá, onde o fotorrealista se vai esforçar em realizar uma cópia pura e simples da imagem utilizando uma fatura lisa, apagando qualquer traço material, tornando invisível a mão do artista, eu assumo, pelo contrário, um “make” aparente: traços de caneta, tramas, hachuras bem visíveis, sombras e luzes não correspondendo à realidade, ausência de focais, presença da escrita na composição … Escrita em espelho que vai perturbar o espectador, escrita especular que eu utilizava quando aprendi a escrever.

Em último lugar, a escolha da esferográfica, ligada ela também a recordações da mão esquerda: o prazer dos desenhos rápidos nas margens dos cadernos escolares, a alegria de já não ter manchas nas folhas e sobre o fio da mão.
Mas é preciso acrescentar que se a “bic” apresenta outras vantagens (uso fácil, precisão, barato, tinta de boa qualidade), ela apresenta o inconveniente de não ser possível apagá-la. Com uma caneta “bic” não é possível,”arrepender-se”, daí a necessidade de não ser desajeitado e, no meu caso, de ser hábil com a mão esquerda …

Se, como o afirma o especialista dos canhotos Pierre-Michel Bertrand: “Ser canhoto não é nem um handicap nem uma fonte de orgulho, é um sinal particular”, então, os desenhos de “Recordações da mão esquerda” são a afirmação desta singularidade.

Mathieu Sodore, Abril 2021

canhotismo

A minha mãe teve quatro filhos. Adepta do tricô, ela gostava de dizer, falando de nós : “Eu fiz uma malha pela frente e uma malha pelo avesso”. Como o dia e a noite; o quente e o frio; o nascimento e a morte. “Pelo avesso” era a minha irmã e eu : não pela frente porque somos canhotas.

Não havia maldade nessas palavras porque ela própria era “ canhota contrariada”, segundo esta doce expressão eufemística que ela tinha frustrado, tornando-se uma perfeita ambidestra.

Depressa os dados foram lançados : nós não pertencíamos ao mesmo mundo. Por um lado, as crianças “ às direitas”, como o mundo desejava, o da maioria, e nós, os “desajeitados”, os inábeis, os “enredados”, aqueles que tinham deficiência em apreender o mundo que não nos queria. O nosso defeito.

Muito depressa, tomei conhecimento do meu handicap : na escola primária, aprender a escrever foi trabalhoso : escrita em espelho, escrita pelo avesso, começando sempre pela direita para ir em direção a mim – a esquerda que me definia – deixando para trás a direita com quem tinha tantos problemas : os borrões de tinta deixados pelo meu punho no meu caderno escolar, as tesouras que acabam por rasgar o papel em vez de fazer um corte preciso, nítido e limpo. Aprender a apertar os meus atacadores, a ler as horas, a tocar um instrumento…

Então, pequena, vestindo-me, fazia sempre uma disputa entre o lado esquerdo e o direito : que lado ia pôr primeiro as meias? O seu sapato? Enfiar a manga da camisola… Estes dados estavam viciados porque, evidentemente, a esquerda ganhava sempre! Ela tinha que se vingar!

Rapidamente concluí que nós estávamos à parte, mesmo especiais. Como na série televisiva “Os invasores”, nós éramos seres estranhos vindos de outro planeta. O nosso sinal distintivo não era o dedinho mas a mão inteira a nossa lateralidade : a nossa força. Conseguir viver num mundo que não é feito para nós, graças a uma vontade, um treino, uma obstinação, quase uma raiva… utilizando, antes de tudo o nosso hemisfério direito! Que ironia!

E mais tarde, adolescente, debrucei-me sobre os canhotos célebres, aqueles que tinham tido êxito num ou noutro domínio. Não fiquei dececionada : Nós, os canhotos, somos artistas, criadores, inventores formidáveis… Temos um sentido artístico mais desenvolvido – olhem Jimi Hendrix, Miguel Ângelo ou Levis Carroll – e nós pensamos de forma diferente, o que faz de nós adversários temíveis. Peguemos no exemplo do ténis, com Mc Enroe e Connors que conseguem enervar os seus adversários porque eles pensam “ao contrario”. O mundo foi dirigido por numerosos canhotos : Clinton, Obama entre outros.

Nós temos uma visão do mundo, uma sensibilidade própria porque, sim, há uma forma de pensar do canhoto; não é Michel Serres que me contrariará.

È verdade que nós não representamos mais do que 10% da população e, ainda hoje, não posso deixar de pensar que nós somos um grupo à margem e solidário : reconhecemo-nos entre canhotos e atraímo-nos. O meu melhor amigo é canhoto, o meu namorado é canhoto e, seja onde for, nunca deixo de identificar à minha volta os canhotos à primeira vista.

Não estamos sentados à direita de deus mas estamos entre vocês, assim como a galeria de retratos de Mathieu Sodore.

Anne-Françoise Dallery
Abril 2021


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